quinta-feira, 1 de junho de 2017

Leviatã de alpargatas

Leviatã de alpargatas

Criatura monstruosa de origem bíblica, o Leviatã ocupou o imaginário popular dos navegantes da Idade Média. Inúmeros os relatos dos que cruzaram o temido monstro que naufragava navios oceano afora. Nas palavras de Jó (41:18-22): “da sua boca saem tochas; faíscas de fogo saltam dela. Das suas narinas procede fumaça, como de uma panela fervente. O seu hálito faz incender os carvões. Diante dele até a tristeza salta de prazer”.

Em 1651, Leviatã deu nome à mais conhecia obra de Hobbes, na qual o humano é apontado como um completo egoísta, que, juiz de si mesmo, ignora o interesse coletivo na busca da própria satisfação: “o homem é o lobo do homem”. Para o filósofo inglês, somente uma autoridade maior, centralizada, capaz de regular e punir os indivíduos desobedientes ao Pacto Social traria a paz social. Para esta temida figura, Hobbes valeu-se da metáfora do Leviatã, também conhecida pelos botecos do mundo pela alcunha de Estado.

Passados 363 anos, homônimo filme russo, dirigido por Andrey Zvyagintsev, retratou o tema na ótica da Rússia pós-soviética. Dotado de uma envergadura de dar inveja aos ancestrais medievais, o Leviatã contemporâneo desfila com músculos torneados pela corrupção e burocracia das instituições. Até que um pai de família, Kolya, desafia a criatura para não se ver despejado da própria terra por um prefeito mal intencionado. Não é preciso dizer o resultado da inglória batalha, nem que a obra-prima, reverenciada nos mais importante festivais, foi censurada e tachada de “antirrussa” pelas autoridades do país. Leviatã versus Leviatã.

Por aqui, nossa versão tupiniquim não é menos assombrosa. Enorme, com tentáculos continentais, quase onipresente. Às vezes me pergunto se a criatura, inebriada e maligna, é digna do nome. A comparação parece injusta com o mito bíblico cuspidor de tochas. Nosso monstrengo, que agasalha 54 mil autoridades com foro privilegiado e esmaga, como baratas, milhões de miseráveis, é mais diabólico. Talvez se assemelhe a um Cavalo de Tróia, cujos mercenários, tal qual numa trama kafkiana, um dia o abandonarão para nos aniquilar numa noite de sono.

Desperto do pesadelo e a figura sombria do Leviatã é substituída pelo semblante de Gilmar Mendes no portal de notícias. O ministro, já interceptado pela Polícia Federal em ligações telefônicas com políticos indiciados, dessa vez promete rever o posicionamento sobre a prisão a partir da condenação em 2ª instância.

O tema, despercebido por alguns, é o alicerce básico para a construção de um país mais decente. Gilmar, antes efusivo defensor da medida, promete acompanhar Toffoli e Lewandowski para reverter a maioria anterior do plenário e fazer prevalecer o entendimento de que um réu apenas cumpra a pena após a condenação instâncias superiores em Brasília. Estamos falando de décadas de tramitação e prescrição da maioria das penas. No caso do ex-senador Luiz Estevão, lá se vão 24 anos sem a finalização do processo. Para os indiciados de hoje: quem sabe 2.040?

Enquanto Leviatã dá cambalhotas de alegria, a súbita mudança do supremo jurista é justificada pela preocupação com “os réus pobres”. A coincidência temporal com o avanço da lava-jato contra os amigos Temer e Aécio é mero acaso. Com este, Gilmar foi grampeado pela Polícia Federal articulando a favor do criticado projeto de Lei de Abuso de Autoridade. Na companhia daquele, jantares não oficiais noites adentro pelo Palácio do Jaburu. Pelas mídias sociais, há quem diga que o gesto, mais que franciscano, é sobrenatural. Confirmaria o presságio de um profeta, de um passado recente, que um dia sussurrou sobre um grande acordo nacional para estancar a sangria, “com o Supremo, com tudo”. Coisa de Teoria da Conspiração.

O Ministro Joaquim Barbosa certa vez acusou Gilmar, em plenário, de “destruir a credibilidade do judiciário brasileiro”. A atriz Monica Iozzi foi além e o chamou de cúmplice por libertar Roger Abdelmassih, julgado por 58 estupros. Acabou condenada a pagar 30 mil por danos morais. Os adjetivos, um a um, desafiam essa caneta. Contenho-os. Falta-me o arrojo transbordado por dois brasileiros. Ou a bravura do russo fictício com o dedo em riste para o monstro malvado. Leviatã dá gargalhadas. Será que Hobbes descansa em paz?



Renato Perim







Manuscrito sagrado da Profecia:
MACHADO - O primeiro a ser comido vai ser o Aécio.
JUCÁ - Todos, porra. E vão pegando e vão..
MACHADO - O Aécio, rapaz... O Aécio não tem condição, a gente sabe disso. Quem que não sabe? Quem não conhece o esquema do Aécio? Eu, que participei de campanha do PSDB...
JUCÁ - É, a gente viveu tudo.
(...)
JUCÁ - Só o Renan que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.
MACHADO - Com tudo, aí parava tudo.
JUCÁ - É. Delimitava onde está, pronto







18 comentários:

  1. Caro Renato Perim parabéns pelo belo texto, elucidador e preciso na análise.👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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    1. Marcelo, vindo do grande jornalista que é você, fico ainda mais honrado com o elogio. Muito obrigado.

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  2. Prezado, vi essa crônica circulando no fcb, gostaria de parabeniza-lo pelo texto e pela sutileza nas palavras. não tinho ouvido sobre este filme, vou tentar acha-lo. se bem que não há maiores emoções às noticias diariamente no nosso país. De Leviatã, já estamos fartos. Ricardo Oliveira Dante - Porto Alegre

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    1. Obrigado, Ricardo. Realmente, de Leviatã já estamos fartos, mas o filme, ainda assim, vale a pena. Abs

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  3. Perim, parabéns pelo texto. No Brasil, nosso é Leviatã é mesmo o Estado, gigantesco, inchado, inoperante, incompetente e, óbvio, corrupto. Quanto maior o Estado, maior o cabide de emprego para políticos e sua camarilha.

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    1. Luciano, obrigado pelo comentário e pelo incentivo de sempre. No mais, é torcer para nosso monstrengo encolher um pouco ou, ao menos, retrair os tentáculos. Vamos ver no que dá.. Abs

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  4. Parabéns pelo texto Perim. Grande estilo e lucidez na obra... Abraços.

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    1. Obrigado! O monstro já esteve em Gouveia também?

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    2. O monstro é onipresente, ainda mais no Brasil....

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  5. Um dos grandes desesperos de lutar contra criaturas míticas dessa estirpe é a disparidade entre nossos poucos segundos de representatividade histórica e sua existência quase imemorial no pastoreio de tantos e tantos lobos dentre os homens. Dá desespero, dá angústia, dá medo. Somos pequenos, somos breves - e os profetas mais resilientes entregam a caneta antes de se tornarem líderes de uma nova manada, antes de serem atropelados pela baba cega, imediatista e venenosa do Leviatã. Nos resta fugir - às grades, à sombra, às mensagens tristes e vazias - ou resistir. De canivetes em punho, podemos abrir pequenas feridas no bojo da criatura até que a onda do tempo a leve embora. Quando voltar, talvez já não terá as presas da tragédia, mas somente o sorriso amarelo da farsa. E os filhos dos filhos terão então outras angústias para solucionar no coletivo da experiência humana, um leviatã a menos no caminho. Compartilho sua perplexidade e gostei muito do texto! Seguem as palavras, segue o pensamento - seguimos de canivetes em punho rabiscando no tempo uma possível contranarrativa nestes tempos sombrios de pós-verdade. Vive la résistance!


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    1. Obrigado! Diria que suas palavras, lidas e relidas, são mais belas que a própria crônica comentada. Que se unam. Que se multipliquem e, como você bem disse, nos resgatem destes tempos sombrios.

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  6. Renato, seu texto é espetacular, mas me enche de tristeza, fazendo-me lembrar daquela música do Chico que dizia "meu coração é um pote até aqui de mágoas e qualquer desatenção (faça não) pode ser a gota d'água". É assim que eu tenho me sentido em relação a este nosso país. Gostaria de copiar o link do texto e colocar no Blogson e no meu perfil de Facebook. Posso? (se precisar de um advogado, agora já sei a quem procurar. Você é muito bom!)

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    1. JB, obrigado pelo seu comentário e incentivo. Lógico que pode compartilhar onde quiser. Depois me adicione tb no Facebook. No mais, médico e advogado é bom nem precisar.. rs

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  7. Texto fantástico, retrata com fidelidade como alguns membros do STF denigrem e desmerecem a Corte Suprema, que hoje é motivo de chacota nacional.A instituição que tem um Lewandowsky, um Toffoli e um Gilmar não pode esperar respeito e credibilidade dos cidadãos de bem. Parabéns pela abordagem. Mais uma vez você mandou bem!

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  8. Texto muito bom, bem condizente com o nosso momento brasileiro, aonde não sabemos a quem nos socorrer! Parabéns doutor

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  9. Bom pra caralho!!! Pããããããta que o pariu!!!!

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