Leviatã de alpargatas
Criatura monstruosa de origem bíblica, o Leviatã ocupou o
imaginário popular dos navegantes da Idade Média. Inúmeros os relatos dos que
cruzaram o temido monstro que naufragava navios oceano afora. Nas palavras de
Jó (41:18-22): “da sua boca saem
tochas; faíscas de fogo saltam dela. Das suas narinas procede fumaça, como de
uma panela fervente. O seu hálito faz incender os carvões. Diante dele até a
tristeza salta de prazer”.
Em 1651, Leviatã deu nome à mais conhecia obra de Hobbes, na
qual o humano é apontado como um completo egoísta, que, juiz de si mesmo, ignora
o interesse coletivo na busca da própria satisfação: “o homem é o lobo do homem”.
Para o filósofo inglês, somente uma autoridade maior, centralizada, capaz de
regular e punir os indivíduos desobedientes ao Pacto Social traria a paz social.
Para esta temida figura, Hobbes valeu-se da metáfora do Leviatã, também conhecida
pelos botecos do mundo pela alcunha de Estado.
Passados 363 anos, homônimo filme russo, dirigido por Andrey Zvyagintsev, retratou o tema na ótica da Rússia pós-soviética. Dotado de
uma envergadura de dar inveja aos ancestrais medievais, o Leviatã contemporâneo
desfila com músculos torneados pela corrupção e burocracia das instituições. Até
que um pai de família, Kolya, desafia a criatura para não se ver despejado da
própria terra por um prefeito mal intencionado. Não é preciso dizer o resultado
da inglória batalha, nem que a obra-prima, reverenciada nos mais importante
festivais, foi censurada e tachada de “antirrussa” pelas autoridades do país. Leviatã
versus Leviatã.
Por aqui, nossa versão tupiniquim não é menos assombrosa. Enorme,
com tentáculos continentais, quase onipresente. Às vezes me pergunto se a criatura, inebriada e maligna,
é digna do nome. A comparação parece injusta com o mito bíblico
cuspidor de tochas. Nosso monstrengo, que agasalha 54 mil autoridades com foro
privilegiado e esmaga, como baratas, milhões de miseráveis, é mais diabólico.
Talvez se assemelhe a um Cavalo de Tróia, cujos mercenários, tal qual numa
trama kafkiana, um dia o abandonarão para nos aniquilar numa noite de sono.
Desperto do pesadelo e a figura sombria do Leviatã é
substituída pelo semblante de Gilmar Mendes no portal de notícias. O ministro, já interceptado
pela Polícia Federal em ligações telefônicas com políticos indiciados, dessa vez
promete rever o posicionamento sobre a prisão a partir da condenação em 2ª
instância.
O tema, despercebido por alguns, é o alicerce básico para a
construção de um país mais decente. Gilmar, antes efusivo defensor da medida,
promete acompanhar Toffoli e Lewandowski para reverter a maioria anterior do
plenário e fazer prevalecer o entendimento de que um réu apenas cumpra a pena
após a condenação instâncias superiores em Brasília. Estamos falando de décadas
de tramitação e prescrição da maioria das penas. No caso do ex-senador Luiz
Estevão, lá se vão 24 anos sem a finalização do processo. Para os indiciados de
hoje: quem sabe 2.040?
Enquanto Leviatã dá cambalhotas de alegria, a súbita mudança do
supremo jurista é justificada pela preocupação com “os réus pobres”. A
coincidência temporal com o avanço da lava-jato contra os amigos Temer e Aécio é
mero acaso. Com este, Gilmar foi grampeado pela Polícia Federal articulando a
favor do criticado projeto de Lei de Abuso de Autoridade. Na companhia daquele,
jantares não oficiais noites adentro pelo Palácio do Jaburu. Pelas mídias
sociais, há quem diga que o gesto, mais que franciscano, é sobrenatural. Confirmaria
o presságio de um profeta, de um passado recente, que um dia sussurrou sobre um
grande acordo nacional para estancar a sangria, “com o Supremo, com tudo”. Coisa
de Teoria da Conspiração.
O Ministro Joaquim Barbosa certa vez acusou Gilmar, em
plenário, de “destruir a credibilidade do judiciário brasileiro”. A atriz
Monica Iozzi foi além e o chamou de cúmplice por libertar Roger Abdelmassih, julgado
por 58 estupros. Acabou condenada a pagar 30 mil por danos morais. Os
adjetivos, um a um, desafiam essa caneta. Contenho-os. Falta-me o arrojo transbordado
por dois brasileiros. Ou a bravura do russo fictício com o dedo em riste para o monstro malvado. Leviatã dá gargalhadas. Será que Hobbes descansa em paz?
Renato Perim
Manuscrito sagrado da Profecia:
MACHADO - O primeiro a ser comido vai ser o
Aécio.
JUCÁ - Todos, porra. E vão pegando e vão..
MACHADO - O Aécio, rapaz... O Aécio não tem
condição, a gente sabe disso. Quem que não sabe? Quem não conhece o esquema do
Aécio? Eu, que participei de campanha do PSDB...
JUCÁ - É, a gente viveu tudo.
(...)
JUCÁ - Só o Renan que está contra essa
porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente,
esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num
grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.
MACHADO - Com tudo, aí parava tudo.
JUCÁ - É. Delimitava
onde está, pronto
Caro Renato Perim parabéns pelo belo texto, elucidador e preciso na análise.👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirMarcelo, vindo do grande jornalista que é você, fico ainda mais honrado com o elogio. Muito obrigado.
ExcluirPrezado, vi essa crônica circulando no fcb, gostaria de parabeniza-lo pelo texto e pela sutileza nas palavras. não tinho ouvido sobre este filme, vou tentar acha-lo. se bem que não há maiores emoções às noticias diariamente no nosso país. De Leviatã, já estamos fartos. Ricardo Oliveira Dante - Porto Alegre
ResponderExcluirObrigado, Ricardo. Realmente, de Leviatã já estamos fartos, mas o filme, ainda assim, vale a pena. Abs
ExcluirPerim, parabéns pelo texto. No Brasil, nosso é Leviatã é mesmo o Estado, gigantesco, inchado, inoperante, incompetente e, óbvio, corrupto. Quanto maior o Estado, maior o cabide de emprego para políticos e sua camarilha.
ResponderExcluirLuciano, obrigado pelo comentário e pelo incentivo de sempre. No mais, é torcer para nosso monstrengo encolher um pouco ou, ao menos, retrair os tentáculos. Vamos ver no que dá.. Abs
ExcluirParabéns pelo texto Perim. Grande estilo e lucidez na obra... Abraços.
ResponderExcluirObrigado! O monstro já esteve em Gouveia também?
ExcluirO monstro é onipresente, ainda mais no Brasil....
ExcluirUm dos grandes desesperos de lutar contra criaturas míticas dessa estirpe é a disparidade entre nossos poucos segundos de representatividade histórica e sua existência quase imemorial no pastoreio de tantos e tantos lobos dentre os homens. Dá desespero, dá angústia, dá medo. Somos pequenos, somos breves - e os profetas mais resilientes entregam a caneta antes de se tornarem líderes de uma nova manada, antes de serem atropelados pela baba cega, imediatista e venenosa do Leviatã. Nos resta fugir - às grades, à sombra, às mensagens tristes e vazias - ou resistir. De canivetes em punho, podemos abrir pequenas feridas no bojo da criatura até que a onda do tempo a leve embora. Quando voltar, talvez já não terá as presas da tragédia, mas somente o sorriso amarelo da farsa. E os filhos dos filhos terão então outras angústias para solucionar no coletivo da experiência humana, um leviatã a menos no caminho. Compartilho sua perplexidade e gostei muito do texto! Seguem as palavras, segue o pensamento - seguimos de canivetes em punho rabiscando no tempo uma possível contranarrativa nestes tempos sombrios de pós-verdade. Vive la résistance!
ResponderExcluirObrigado! Diria que suas palavras, lidas e relidas, são mais belas que a própria crônica comentada. Que se unam. Que se multipliquem e, como você bem disse, nos resgatem destes tempos sombrios.
ExcluirRenato, seu texto é espetacular, mas me enche de tristeza, fazendo-me lembrar daquela música do Chico que dizia "meu coração é um pote até aqui de mágoas e qualquer desatenção (faça não) pode ser a gota d'água". É assim que eu tenho me sentido em relação a este nosso país. Gostaria de copiar o link do texto e colocar no Blogson e no meu perfil de Facebook. Posso? (se precisar de um advogado, agora já sei a quem procurar. Você é muito bom!)
ResponderExcluirJB, obrigado pelo seu comentário e incentivo. Lógico que pode compartilhar onde quiser. Depois me adicione tb no Facebook. No mais, médico e advogado é bom nem precisar.. rs
ExcluirTexto fantástico, retrata com fidelidade como alguns membros do STF denigrem e desmerecem a Corte Suprema, que hoje é motivo de chacota nacional.A instituição que tem um Lewandowsky, um Toffoli e um Gilmar não pode esperar respeito e credibilidade dos cidadãos de bem. Parabéns pela abordagem. Mais uma vez você mandou bem!
ResponderExcluirMiriam, muito obrigado!
ExcluirTexto muito bom, bem condizente com o nosso momento brasileiro, aonde não sabemos a quem nos socorrer! Parabéns doutor
ResponderExcluirObrigado, Marcos.
ExcluirBom pra caralho!!! Pããããããta que o pariu!!!!
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