O rio, o menino
e a lama
Era um fim de tarde em Governador Valadares. Após horas
de diversão no areal, a meninada pulou no rio. Aos quinze anos meu corpo
debutava com a fartura das águas do Rio Doce.
Manoel de Barros faria do instante um poema de poucas
palavras. Quanto a mim, guardo o momento como o encontro singular com um rio
que nunca foi meu. E que então já era caçoado. “É sujo”, diziam.
Mas o rio, que parecia não guardar mágoas, retribuía a
minha distância com o líquido que saciou a sede dos meus primeiros dezessete
anos de vida. Quimicamente tratado, mas abundante. Se 3/4 do corpo humano é composto
de água, o Rio Doce dominava-me. Se nunca foi meu, talvez eu fosse dele.
E, sem saber ao certo quem era de quem, certa vez o “rio
sem menino” separou do “menino de rio”, que nem menino era mais.
Esqueceram-se.
Esqueceram-se.
Até que um dia, num certo escritório da capital, entre
telefonemas, relatórios e e-mails, o rio desaguou novamente em mim. Não veio em
um banho refrescante, nem tratado num copo, mas na tela do
computador.
O Rio Doce virou manchete! Até a mídia internacional anunciava
a lama que se apoderou do seu leito.
Nos vídeos, vi os peixes que na minha infância sonhei
em pescar. Sufocados no barro, estavam todos lá: dourados, piaus e bagres. Uma
tartaruga pedia passagem para a vida. Sem sucesso. Pelo telefone, papai mandou
notícias: não podemos mais beber da água que te fez gente.
Como definir essa lama?
O dicionário a princípio se faz literal: “lama:
mistura de terra, ou argila, e
água”, mas logo se sensibiliza: “lama: homem fraco, sem energia”. E, como se me encurralasse, vai além: “tirar
da lama: tirar da corrupção,
dos vícios, da baixeza. Viver na lama: viver corrompidamente, na baixeza e nos vícios”.
Bingo, Michaelis!
Tal qual o menino que não se sentia dono do rio que o
compunha, reconheçamos que a lama que escorre pelo leito é parte de nós, “homens
fracos, sem energia”.
Além de pedras na mão, nossa passividade enquanto
cidadãos também carrega a culpa pela tragédia ecológica. E por tantas outras tragédias
cotidianas, mortes nas filas de hospitais, indigna educação da juventude e essa
desigualdade sem fim.
Como cantou o rapper:
“Vamos as atividades
do dia,
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir,
A essa morna rebeldia”
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir,
A essa morna rebeldia”
Fruto da nossa cultura ou genética, a inaptidão do
brasileiro para indignação é o passaporte para o caos. São 04 servidores para
fiscalizar 736 barragens de Minas Gerais e 28.004 para sonambular nos corredores do Congresso Nacional, 70%
deles comissionados.
E o que fazemos senão de assistir, inertes, a essa banalidade
do absurdo que arruína nossa era?
Além de exigir a limpeza do rio e a punição dos
responsáveis, é hora de darmos um passo adiante e sairmos dessa
lama que impregna nossa sociedade.
Talvez assim, os futuros netos do Vale do Rio Doce um
dia possam ter e ser, em plenitude, um rio que hoje se mostra ferido pela nossa
negligência.