A copa
Ernesto Apolinário Carneiro, banqueiro
renomado. Amigo de deputados, não menos íntimos dos desembargadores. Possuía,
ele mesmo, o telefone particular do governador, para quem já ligou duas vezes,
a última para ofertar congratulações no aniversário. Também criava cavalos. De grande
importância social em uma província montanhosa do país Pandeiro.
Elizabeth Andrade de Andrada, filha de Juvenal Andrade de Andrada, por sua
vez filho, neto e bisneto de outros Andrade de Andrada. Não dava a mínima ao
mercado financeiro, mas adorava bolsas de valor. Apresentada ao mundo provinciano aos 15 anos,
bailou, sob o frisson das amigas, com ninguém menos que Aripetânio Lima, o predileto
galã juvenil das moiçolas pandeirenses.
Ernesto e Elizabeth tinham vários
pontos em comum.
O primeiro deles a cama,
partilhada após o majestoso matrimônio que comoveu os mais nobres montanhenses
da província. O segundo era uma estranha obsessão por automóveis novos, substituídos a cada ano novo por outros novos automóveis novos. Todos brancos,
como os dentes clareados de Ernesto e o vestido italiano que Elizabeth um dia
pulou ondinhas na Ilha dos Reis.
Mas o ponto deste conto tonto não
são carros de gala juvenis ou Aripetânios brancos, mas a copa.
Viva a copa!
Com piso recém construído de mármore
javanês e ladeada de painéis do franco-suíço Rudolf Bonnet, era nesse exótico espaço anexo à cozinha que o fidalgo casal recebia
patrícios e patricinhas. Bizarro em qualquer lugar do mundo, não no país
Pandeiro.
Os encontros aconteciam a cada quatro semanas e eram estampados nos periódicos circulantes dos salões de
beleza da província, recintos onde as provincianas escorriam os antes belos
cabelos encaracolados e debatiam, às vezes em demasia, similares temas
culturais de alta relevância. Foram até citados na coluna de um esquelético
periódico da capital dos artistas. Em letras miúdas e sem fotos, mas quem se
importou com isso?
Certa feita, numa roda em Baris, Apolinário,
entre charutos, puros maltes e embaixadores, não se conteve. Era hora de o
mundo conhecer a sua copa. Convite feito, convite aceito: em duas semanas, a
trupe celestial mundial abancaria nas cadeiras de marfim dos Andrade de Andrada
Carneiro.
Assessorado pelo marketeiro Dadu
Peçanha, dono da premiada agência publicitária “Um sorriso mil cliques”, o
casal, mesmo contrariado, incluiu na lista gente importante até dos mais desprovidos
cantos do planeta. Uma copa cosmopolita era a oportunidade de o casal
provinciano tornar-se global.
Pelo WerdeApp, aplicativo de
comunicação que domina com maestria cada pandeirense da nação, melhor dizendo,
aplicativo que cada pandeirense da nação domina com maestria, a notícia ressoou por montanhas, colunas e planícies. #somosotodoscarneiro
era o que se dizia!
Tudo pronto, exceto por um
problema de última hora: Josefina Aparecida de Jesus.
Copeira do lar, como de costume, Josefina acordou às 4h20.
Às 5h12 já estava no ponto de ônibus e a filha no sobrado da mãe. Mudança de
berço, mudança de linha, o relógio apontava 7h05 e Josefina enfim chegara ao
condomínio que abrigava a mais famosa copa das redondezas.
Sorriso no rosto, castrado pela
vozearia da patroa:
Copa de chão sem brilho,
Precisa lustrar, a visita vai
chegar!
Arrume a casa, cada ladrilho,
Poeira debaixo do tapete pra
gente chique pisar!
E como um trem que segue o trilho,
Para o festejo da copa não ouse desviar!
Por horas, aquelas palavras ecoaram.
E Josefina, que durante anos amargou uma indignação silenciosa, decidiu que invadiria
a copa. Chegou o dia de os gringos descobrirem que o país Pandeiro não se
resumia à visão do fantasioso espaço de adornos dourados e taças de champagne.
Relataria, em alto e bom tom,
que o requinte daqueles assentos era compartilhado com os mais festejados
barões da nação, embusteiros que desviavam para o bolso dinheiro destinado a
remédio e merenda. E que os decadentes Andrada de Andrade Carneiro investiram milhão
na reforma da mais famosa copa provinciana para camuflar uma crise econômica
familiar.
Estava mesmo decidida! Pelo WerdeApp convocou
a militância e em quinze minutos outras oito copeiras do condomínio puseram-se a
postos na área de serviço.
Ao saber da notícia, o casal apavorou.
Faltavam quinze minutos para o horário marcado, logo os choferes engravatados ali vomitariam a elite universal e a glamorosa copa estava para ser ocupada. Disposta a resolver
o imbróglio pessoalmente, Elizabeth ofereceu uma bolsa da família para cada uma. De grife. Recusaram!
Acionar a polícia seria em vão,
não daria tempo e o escândalo ascenderia a elevada proporções. Isso nem pensar!
Josefina garantiu a paz.
Prometeu ordem e rogou por dez minutos na copa apenas. Elizabeth negou de rompante,
“vândalas” – pensou, “eles não entendem português”- justificou.
A campainha tocou. Pelo visor
do Ui-Phone Apolinário viu que haviam chegado.
(Silêncio)
Novamente a campainha: o
espetáculo vai começar. Suspiros na emudecida platéia de poeiras varridas.
O palco está formado:
Cena 1 - Pelo jardim, cinco
aristocráticos casais caminham sorridentes. Ouvem vozes distantes, desavisados.
Cena 2 - Apolinário e
Elizabeth eretos no portal da residência. Ouvem as mesmas vozes, assombrados.
Cena 3 - Encurraladas na área
de serviço, as (agora dezenove) pretensas invasoras anseiam. E desnudam vozes,
que sonham em se tornar brados.
Em um instante, o que será da
copa?
Nota do autor: essa é uma obra fictícia, qualquer semelhança com fatos, pessoas e coisas, é mera coincidência.