sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O rio, o menino e a lama

O rio, o menino e a lama

Era um fim de tarde em Governador Valadares. Após horas de diversão no areal, a meninada pulou no rio. Aos quinze anos meu corpo debutava com a fartura das águas do Rio Doce.

Manoel de Barros faria do instante um poema de poucas palavras. Quanto a mim, guardo o momento como o encontro singular com um rio que nunca foi meu. E que então já era caçoado. “É sujo”, diziam.

Mas o rio, que parecia não guardar mágoas, retribuía a minha distância com o líquido que saciou a sede dos meus primeiros dezessete anos de vida. Quimicamente tratado, mas abundante. Se 3/4 do corpo humano é composto de água, o Rio Doce dominava-me. Se nunca foi meu, talvez eu fosse dele.

E, sem saber ao certo quem era de quem, certa vez o “rio sem menino” separou do “menino de rio”, que nem menino era mais. 

Esqueceram-se.

Até que um dia, num certo escritório da capital, entre telefonemas, relatórios e e-mails, o rio desaguou novamente em mim. Não veio em um banho refrescante, nem tratado num copo, mas na tela do computador. 

O Rio Doce virou manchete! Até a mídia internacional anunciava a lama que se apoderou do seu leito.

Nos vídeos, vi os peixes que na minha infância sonhei em pescar. Sufocados no barro, estavam todos lá: dourados, piaus e bagres. Uma tartaruga pedia passagem para a vida. Sem sucesso. Pelo telefone, papai mandou notícias: não podemos mais beber da água que te fez gente.

Como definir essa lama?

O dicionário a princípio se faz literal: “lama: mistura de terra, ou argila, e água”, mas logo se sensibiliza: “lama: homem fraco, sem energia”. E, como se me encurralasse, vai além: “tirar da lama: tirar da corrupção, dos vícios, da baixeza. Viver na lama: viver corrompidamente, na baixeza e nos vícios”.

Bingo, Michaelis!

Tal qual o menino que não se sentia dono do rio que o compunha, reconheçamos que a lama que escorre pelo leito é parte de nós, “homens fracos, sem energia”.

Além de pedras na mão, nossa passividade enquanto cidadãos também carrega a culpa pela tragédia ecológica. E por tantas outras tragédias cotidianas, mortes nas filas de hospitais, indigna educação da juventude e essa desigualdade sem fim.

Como cantou o rapper:

“Vamos as atividades do dia,
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir,
A essa morna rebeldia”


Fruto da nossa cultura ou genética, a inaptidão do brasileiro para indignação é o passaporte para o caos. São 04 servidores para fiscalizar 736 barragens de Minas Gerais e 28.004 para sonambular nos corredores do Congresso Nacional, 70% deles comissionados.

E o que fazemos senão de assistir, inertes, a essa banalidade do absurdo que arruína nossa era?

Além de exigir a limpeza do rio e a punição dos responsáveis, é hora de darmos um passo adiante e sairmos dessa lama que impregna nossa sociedade.  

Talvez assim, os futuros netos do Vale do Rio Doce um dia possam ter e ser, em plenitude, um rio que hoje se mostra ferido pela nossa negligência.