A lógica num cadeado de bicicleta
O
apresentador, com ar sensacionalista, é o porta-voz da tragédia do dia. Enterrados
numa poltrona de couro, assistimos, com indignação, às lágrimas focadas de um cortejo
fúnebre, onde familiares e amigos da vítima, misturam-se entre palavras de
ordem e lamentos.
-
Eu espero que nenhuma mãe do mundo sinta o que estou sentido - é o recado
honesto de mais uma mulher em frangalhos.
A
elite, acuada, rebela-se com o quadro de horror e sorri, com os dentes amarelos,
ao ouvir sobre mais um linchamento público.
-
Direitos humanos uma ova! Que apodreçam todos os porcos em um presídio imundo.
A
queda de braço está estabelecida.
-
Barbárie, justiça com as próprias mãos, anarquia - contra-argumenta a pseudo-esquerda.
“Precisamos cuidar das nossas crianças”, emenda o jovem deputado, ecoando o que
o avô, então senador, esbravejou há não sei quantos mandatos atrás. Não
seria ele a criança da época?
Nas
mídias sociais, a contenda ganha tons idealistas. Como num bailado de forró, as
“curtidas” e “compartilhadas” vêm aos montes, numa ritmada cadência de dois pra
lá, dois prá cá.
Sou
interrompido por um debate na TV.
A
jornalista, que na capa da revista toma champanhe em uma ilha paradisíaca,
agora se faz séria, mediando dois renomados doutores, não sei se de filosofia
ou sociologia. Talvez os dois e algo mais. Dissecam a periferia e falam,
principalmente ela, com fluência sobre causas, conseqüências e solução.
Impossível
não me lembrar das palavras do ilustre Mário, ouvidas ao gosto de um engordurado
acarajé de Cachoeira, interior baiano:
-
Quem gosta de pobre é intelectual!
O
assunto me aguça e volto à internet. Dessa vez quem me conta é o Dr. Google: 50
mil mortos por ano! 25 assassinatos para cada 100 mil habitantes e vários
pódios nos rankings de violência. Não preciso ir à Suécia e estaciono minha
busca no vizinho Chile, cujos índices são 12 vezes menores.
Por
um lapso, sinto-me um felizardo de estar intacto. Até
que a mente, inquieta, remete-me ao amigo que se gabava de nunca ter gasto um
centavo com seguro do automóvel, mas que amarrava o volante com corrente e, nas
raras estacionadas em vias públicas, visitava o popular a cada 15 minutos, tamanha
a intranqüilidade.
Eis
o que nos resumimos: intranqüilos intactos. Não, a expressão mais sugere um
título de Tarantino. A sangrenta sinfonia do outono clama por um pouco mais de
poesia. Tentemos de novo, “eis o que nos resumimos: afortunados acorrentados”.
Pronto!
Curtam,
twitem, compartilhem e preguem esse texto inútil em um mural do seu departamento
de trabalho. Farei
o favor de não assiná-lo para que indiquem a autoria que melhor convier à
tribo. Que tal Arnaldo Jabor?
Esta
aí o encaixe final deste teatro do absurdo. De uma sociedade cafona, que consente
ao cambalacho e nas ruas clama por padrão FIFA nos serviços públicos. Mas
por que raios alguém deveras inventou a lógica? Por que não podemos reverenciar
práticas de exclusão e ao mesmo gozar de uma coletividade segura?
Que
alarguem os muros dos condomínios para o entorno da Zona Sul e estendam o efeito
mágico protetor das pulseirinhas de neon para além dos camarotes de “gente
bonita”, olhos claros e cabelos alisados.
Um
desses gringos babacas (recapitulando: espertos são os alegres sambistas) um
dia ensinou: “there is no free lunch”.
A
lei da vida é implacável e no final, meu caro, a conta tem que ser paga. Esse
rubro horror é o preço de décadas, quiçá séculos, de simplesmente não sermos um
país sério. Ninguém só imaginava que a fatura viria em prestações tão longas e doloridas.
-
Débito ou crédito, senhor?