sexta-feira, 21 de março de 2014


A lógica num cadeado de bicicleta

O apresentador, com ar sensacionalista, é o porta-voz da tragédia do dia. Enterrados numa poltrona de couro, assistimos, com indignação, às lágrimas focadas de um cortejo fúnebre, onde familiares e amigos da vítima, misturam-se entre palavras de ordem e lamentos.

- Eu espero que nenhuma mãe do mundo sinta o que estou sentido - é o recado honesto de mais uma mulher em frangalhos.

A elite, acuada, rebela-se com o quadro de horror e sorri, com os dentes amarelos, ao ouvir sobre mais um linchamento público.

- Direitos humanos uma ova! Que apodreçam todos os porcos em um presídio imundo.

A queda de braço está estabelecida.

- Barbárie, justiça com as próprias mãos, anarquia - contra-argumenta a pseudo-esquerda. “Precisamos cuidar das nossas crianças”, emenda o jovem deputado, ecoando o que o avô, então senador, esbravejou há não sei quantos mandatos atrás. Não seria ele a criança da época?

Nas mídias sociais, a contenda ganha tons idealistas. Como num bailado de forró, as “curtidas” e “compartilhadas” vêm aos montes, numa ritmada cadência de dois pra lá, dois prá cá.

Sou interrompido por um debate na TV.

A jornalista, que na capa da revista toma champanhe em uma ilha paradisíaca, agora se faz séria, mediando dois renomados doutores, não sei se de filosofia ou sociologia. Talvez os dois e algo mais. Dissecam a periferia e falam, principalmente ela, com fluência sobre causas, conseqüências e solução.

Impossível não me lembrar das palavras do ilustre Mário, ouvidas ao gosto de um engordurado acarajé de Cachoeira, interior baiano:

- Quem gosta de pobre é intelectual!

O assunto me aguça e volto à internet. Dessa vez quem me conta é o Dr. Google: 50 mil mortos por ano! 25 assassinatos para cada 100 mil habitantes e vários pódios nos rankings de violência. Não preciso ir à Suécia e estaciono minha busca no vizinho Chile, cujos índices são 12 vezes menores.

Por um lapso, sinto-me um felizardo de estar intacto. Até que a mente, inquieta, remete-me ao amigo que se gabava de nunca ter gasto um centavo com seguro do automóvel, mas que amarrava o volante com corrente e, nas raras estacionadas em vias públicas, visitava o popular a cada 15 minutos, tamanha a intranqüilidade.

Eis o que nos resumimos: intranqüilos intactos. Não, a expressão mais sugere um título de Tarantino. A sangrenta sinfonia do outono clama por um pouco mais de poesia. Tentemos de novo, “eis o que nos resumimos: afortunados acorrentados”.

Pronto!

Curtam, twitem, compartilhem e preguem esse texto inútil em um mural do seu departamento de trabalho. Farei o favor de não assiná-lo para que indiquem a autoria que melhor convier à tribo.  Que tal Arnaldo Jabor?

Esta aí o encaixe final deste teatro do absurdo. De uma sociedade cafona, que consente ao cambalacho e nas ruas clama por padrão FIFA nos serviços públicos. Mas por que raios alguém deveras inventou a lógica? Por que não podemos reverenciar práticas de exclusão e ao mesmo gozar de uma coletividade segura?

Que alarguem os muros dos condomínios para o entorno da Zona Sul e estendam o efeito mágico protetor das pulseirinhas de neon para além dos camarotes de “gente bonita”, olhos claros e cabelos alisados.

Um desses gringos babacas (recapitulando: espertos são os alegres sambistas) um dia ensinou: “there is no free lunch”.

A lei da vida é implacável e no final, meu caro, a conta tem que ser paga. Esse rubro horror é o preço de décadas, quiçá séculos, de simplesmente não sermos um país sério. Ninguém só imaginava que a fatura viria em prestações tão longas e doloridas.

- Débito ou crédito, senhor?

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