segunda-feira, 4 de novembro de 2013


Pães e construções

 

Fã de cinema europeu, ele odiava chavões.

Quando menos explícito melhor.

Um amor platônico era seu pesadelo.

Preferia o fim ao final feliz.

E numa dessas, Anasdolfo se apaixonou.

Por inteiro e completo.

Era a caixa da padaria de três ruas acima.

Não da luxuosa padaria ao lado, isso não combinava, mas da menor e mais distante.

Ela, com cabelos presos e olhos castanhos, era mesmo bela.

O amor correspondido incomodava-o pela facilidade.

O sorriso do dia anterior convidava a uma saída com sexo no primeiro encontro.

- Não, não, isso nunca!

“Onde estavam os códigos ocultos”?

Com repúdio, Anasdolfo fez-se ranzinza.

E no troco da nota de vinte recebeu balas de maça-verde.

Sim, estava finalmente amado.

À sua maneira.

Duas semanas após, a mexida nas madeixas era a derradeira despida da alma.

Já não pensava em outra coisa e, travesso ao travesseiro, Anasdolfo não domava a antes recatada sutileza.  

A excitação do gozo solitário anunciava o termo àquele clichê de felicidade.

Era hora do fim e com ímpeto dirigiu-se à padaria.

Desviou no caminho a tempo de impedir o convencional e indesejado embate.  

Sem palavras ou justificativas, opôs à esquina do seu eterno amor e dele não mais se ouviu. Não se desfez triste, tampouco feliz. Apenas desapareceu.

Para ela, nada aconteceu. Anasdolfo foi, entre tantos, um despercebido cliente.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Uh tererê!!!


Uh tererê!!!


“A diferença entre um remédio e um veneno está na dosagem”.
(Paracelso – Médico séc. XVI)
 

Em certo segundo de algum minuto de uma madrugada de julho do ano de 2013, um arbitro gesticulou com os braços indicando que determinado clube de futebol, esporte mais popular do país Brasil, havia se tornado campeão.

Popular: agradável ao povo. Povo: conjunto de pessoas que vivem em uma sociedade. Esporte mais popular, portanto, é o que mais agrada ao conjunto de pessoas que vivem em uma sociedade, no caso, a brasileira.  

Voltando ao segundo, mencionado primeiro, ali, naquele instante, desencadeou-se uma histeria coletiva.

De fora, observei-a.

O ilógico fascínio pelo futebol sempre me fascinou.

Com a autoridade de um antigo apaixonado pelo esporte até o início da minha década de vinte, mergulho em sentimentos juvenis e tento decifrar o motor dessa engrenagem. O que me movia?

Não se deve olhar o passado com os olhos do presente, mas em primeiro lugar diria que certa sede de veneração. A tal inquietante (e eterna?) busca do ser humano por ídolos. Para emendar o jargão filosófico: nos idos de 90, o futebol era lá o meu socialismo.

E não é só. Arrisco dizer que essa paixão trazia uma satisfação oculta pela inserção no grupo. Como disse Cícero há mais de dois mil anos: “o homem se sente mais feliz quando acha que está agindo como seus semelhantes e isso é um augúrio triste e terrível para o futuro”.

Longe de algo originário, o agrado pelo futebol na nossa sociedade é um movimento redundante no qual as pessoas se inserem pelo simples fato de a maioria já estar inserida.

Se futebol sensibilizasse por si, como diversa e universalmente nos toca uma deslumbrante paisagem, outros países não o desprezariam como Canadá e Nova Zelândia, fanáticos por hóquei e rúgbi.

A tendência de seguir o comportamento da maioria não é exclusiva do esporte. Longe disso, está presente na essência do homem médio, impregnada na sua cultura e costumes.

Mas se o futebol não é o único instrumento desta tendência, talvez seja uns dos que mais a torna explícita pelo excesso, pela caricatura exposta na emoção e por agrupar um sentimento de orgulho.

Sim, orgulho.

Mesmo os reservados mineiros, muitas vezes incapazes de reconhecer uma virtude própria, colocam a modéstia ao lado para esnobar a superioridade do time de coração.

Um paradoxo curioso: alguém que exalta em demasia os próprios feitos ou as realizações de um filho, por exemplo, é censurado pela coletividade. Outro que enaltece o time e ridiculariza o adversário acaba saudado pelo grupo.

Não raro, as práticas da torcida se assemelham a atos extremistas religiosos. Brigas, lágrimas, uma apoteose! Na Colômbia, o zagueiro Andrés Escobar foi assassinado por ter feito um gol-contra na Copa.

Os sacramentos são cumpridos à risca e logo cedo as crias são lambidas com as cores do time. Com o primeiro grito de guerra curtido pelos amigos do papai no facebook, os mancebos em breve estarão prontos para os primeiros uivos apaixonados sozinhos.

A falta de requinte nos estádios também chama atenção. Palavras de baixo calão, injúrias e homofobia são praticadas como se ali fosse um estado de direito paralelo.

Convencido pela inauguração de um “estádio padrão primeiro mundo” voltei ao campo após anos de ausência e, após solicitar a uma enorme cabeça para se sentar, fui repreendido com veemência ao argumento que “ali não era camarote”. Nas duas horas que fiquei de pé, o contrataste entre dezenas de milhares de cadeiras lustradas e o infinito de pernas esticadas despertou-me mais a atenção ao próprio jogo.

A mídia, tendenciosa pela imbecilização da massa, delicia-se com notícias e manchetes, na máxima de quanto mais frívola melhor. Desconexos analistas do esporte ganham status de grandes pensadores. E o torcedor, embrulhado sob lágrimas em uma bandeira, vira o símbolo do festejado triunfo contra o humilhado adversário. Um ufanismo sem pátria. Um horror!

Na dita final do tal mês de julho do ano de 2013, contaram-me com orgulho, diversas foram as ocorrências de enfarte entre torcedores. Sinal que nossa sociedade está mesmo doente. E os remédios - arte, cultura, natureza e filosofia - aos montes empoeiram-se nas prateleiras.

No Pindorama, quem é macho grita gol!
 
 

 

 

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Crônica: O povo, o taxista e o cético



O povo, o taxista e o cético


Mineiro e taxista são duas figuras que adoram um papo. Pegar um taxi em Belo Horizonte é sinônimo de boa prosa. O melhor é que o áudio é gratuito, já incluído na corrida.

Na era da comercialização do tudo, há de chegar o dia que o serviço será cobrado. Mas enquanto a “bandeira 3” não existe vamos nós aproveitando. De futebol a aquecimento global vale qualquer assunto!

Hoje, como de costume, a corrida foi concorrida. Em tempos de protesto, Sr. Edvaldo mostrava-se maravilhado com o surgimento de uma voz.

Indignado com a política, confessou que em um momento de exaltação chegou a torcer pelo extremo: o povo linchando Sarney e Renan em praça pública!

- Foi o que aconteceu na França, não sei quando e com um rei que não sei o nome. Um passageiro meu contou– disse ele, acrescentando: “É hora do basta”!

Pouco falei e confesso que senti um orgulho silencioso ao constatar que a mobilização nacional extrapolava o movimento estudantil. A nação, enfim, está a postos!

Ao final da corrida, pedi um recibo e a pergunta do Sr. Edvaldo jogou por terra meu sentimento:

- Qual valor preencho?

Na vã esperança de dar uma chance (a mim e não a ele) de o assunto passar despercebido, fingi de desentendido.

A estratégia foi um tiro no pé. Ou melhor, no meu orgulho. Sr. Edivaldo foi agora mais didático na engenharia do crime: “Uai doutor, você pega o recibo maior e ganha no reembolso do cliente”.

Disse que não, despedi-me e fechei a porta.

Sr. Edvaldo, divorciado, dois filhos, pele morena, cabelos negros, barba por fazer. Cidadão trabalhador. Brasileiro indignado. Homem desonesto. Caricatura do nosso povo?

Minha mente foi instigada e uma janela se abriu. Dela observei uma multidão ocupando as praças.

Temos legitimidade?

Nos bastidores de todos os segmentos da nação, a corrupção é uma praga. Onde quer que seja, nível hierárquico, localização geográfica ou departamento, o “cambalacho” está lá, de prontidão em uma prateleira empoeirada ou ocultado entre abraços e sorrisos amarelos.

Qual seria a proporção, destes que manifestam, que pratica ou consente com algum tipo de desonestidade? Talvez poucos, em minha opinião muitos.

Teriam os políticos também o direito de manifestar pedindo tratamento isonômico? Ora, o direito à igualdade é cláusula pétrea, previsto no art. 5º da Constituição, e, em uma nação de corruptos, só eles estariam pagando o pato!

Já até imagino a cena, Fernando Collor e Paulo Maluf, com as caras pintadas, vinagre na mochila e uma faixa com o dizer: "Igualdade já! Imediata inclusão nos protestos de  juízes vendidos, empresários corruptores, fiscais desonestos e também do 'bom de prosa e de recibo' Sr. Edvaldo".

Deixo a cômica tese para os juristas, mas proponho uma reflexão.

Não se muda uma nação de cima para baixo. A transformação vem da base. A mudança mais importante está em cada um de nós, na postura individual e censura à imoralidade alheia.

Pouco adiantará a troca de um ou outro político. A fila infelizmente não é das mais admiráveis. Que troquem todos e asseguro que a farra continuará. Não temos como fugir de certas leis da vida e uma delas é que os representantes políticos refletem o perfil da própria sociedade.

E uma sociedade só se muda com educação.

Nosso silêncio consentiu com um gasto de quase trinta bilhões para uma Copa, valor que poderia ser investido na construção de escolas de qualidade para nossas crianças.

Aprendamos a lição!

E que as vozes que hoje ecoam por avenidas e praças, com legitimidade ou não, sensibilizem-se para a mais relevante questão: EDUCAÇÃO JÁ! 

Está aí um "efeito manada" que contagiaria até os céticos e menos idealistas.

E sobretudo teria a eterna gratidão de nossos netos.
 
 
Nota: crônica escrita em 25/06/13, período de grandes manifestações populares no país.