sexta-feira, 22 de abril de 2016

Que tempos são estes?


Que tempos são estes?


No 17 de abril de 2016, quinhentos e onze parlamentares reuniram-se na Câmara dos Deputados e aprovaram a abertura do processo de impeachment contra a Presidente da República. De um lado, Dilma Rousseff, suas pedaladas fiscais, a crise econômica e denúncias de corrupção do atacado ao varejo. Do outro, novamente corrupção, uma mídia parcial e a sede de vingança da mais demoníaca figura política da atualidade. 

Legítimo processo constitucional? Golpe de Estado? O Facebook, de braços abertos, aguarda seu veredito, enquanto Michel Temer, com semblante de mordomo de filme terror, finge de desentendido. O fim da película revelará a culpa do personagem?

Fato é que domingo foi um show de horror. Seria o congresso imagem e semelhança da sociedade brasileira? Somos aquilo, eu e você? Ou são eles senhores edificando as teias para uma plebe escravizada, que financia, com o suor do trabalho, as benesses da realeza neste ciclo interminável de servidão e poder?

Espelho ou escravo, escandalizei-me. Com todos e tudo. Principalmente com a audácia do deputado Jair Bolsonaro de homenagear um torturador da ditadura militar. E o espanto me assaltou de vez ao ver pessoas de bem, amigos inclusive, defendendo o fato. 

- A causa era legítima. Aquilo era uma guerra, Renato. Se não fosse a ditadura, o socialismo estaria aí – é o que tenho ouvido.  

O argumento é ignóbil. Os socialistas não foram as únicas vítimas da sangrenta ditadura militar. Qualquer um que se opusesse ao regime, o mero apologista da democracia, estava sujeito ao pau de arara. E que mundo é este onde o cidadão não tem o direito de escolher o modelo econômico ou político que mais lhe agrada? Torturar alguém por ser socialista é uma barbárie. Nem os nazistas receberam esse tratamento em Nuremberg. Ou seria legítimo conceber, nos dias de hoje, o sumário assassinato de políticos que mantêm viés de esquerda? 

Até as mais belicosas batalhas têm suas regras. Quem ultrapassá-las merece o repúdio. Práticas como tortura, assassinato intencional e tratamento desumano foram definidas como crimes de guerra pela Convenção de Genebra em 1864 e agora, à luz do século XXI, indivíduos levantam a bandeira da ditadura que banalizou esses crimes. É isso mesmo? 

Bolsonaro é um Donald Trump piorado, um Le Pen tupiniquim. Entre outras atrocidades, disse preferir “um filho morto em acidente a um homossexual” e que “ter filho gay é falta de porrada.” Substitua as palavras “homossexual” e “gay” por “negro” e “judeu” e perceba a gravidade dessas frases. Sobretudo, imagine-se num lugar de um homoafetivo ouvindo isso. 

No Iraque, o jornalista Muntazer al Zaidi jogou um sapato em George Bush. O cuspe de um homossexual foi uma pena por demais branda para o nosso criminoso. Legítima defesa de uma minoria secularmente ridicularizada, das piadas de salão aos gritos de torcida. A verdadeira punição não virá pelo Conselho de Ética ou Judiciário, mas pela censura da coletividade contra um ser humano que dissemina o ódio e preconceito. 

A maturidade traz conhecimento e incertezas. Mas o paradoxo também cristaliza convicções. Em mim, uma delas é o inconformismo à ascensão de uma figura como Bolsonaro em pleno terceiro milênio. Com tanta poesia pelo mundo, não deveríamos sequer estar falando dele. Como bem colocou o dramaturgo alemão Bertholt Brecht, há mais de 50 anos: “Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio”?


Renato Perim