Em linha reta
Em linha reta
Rua
Barão do Rio Branco, Governador Valadares. Não sei quantos anos tinha aquele
menino, nem se seria azul o vermelho descascado do quadro que brilha vivo em
minha memória. Alguém segurava a garupa. Lembro disso, havia uma garupa. A
precoce, tão pequena, ostentava uma garupa. Ou seria uma senhora? E uma mão,
que de repente não existia mais. O menino seguia em linha reta, não sabia
virar. Mas seguia, com a autoridade de quem andava de bicicleta.
Décadas
de desencontros, qual não foi minha surpresa quando, de novo, avistei esse
menino. Descia com a bike pelo monte esburacado e o faceiro, em disparada,
passou por mim. Chamei, mas nem virou o rosto.
Desde
então, vemo-nos com frequência. Presença certa nas trilhas do Espinhaço, não é
adepto de combinações pelas mídias sociais, nem WhatsApp tem. É de supetão que
emerge em acrobacias em mim. Diverte-se com nosso temor da nuvem preta com cara
de dragão e, no temporal, se agiganta. No barro, nem parece um menino. Parece
vários.
É
intransigente. Num certo dia, ignorei o apelo para um pulo na cachoeira. Ficou
magoado, desapareceu. “Onde está você, menino”?, murmurava eu por vales e
serras. Meses de pedaladas em preto e branco, e, na mesma queda d´água, ele me
acenou de longe. Teria ficado por lá todo esse tempo? Menino danado! Na dúvida,
não desobedeço mais. Pediu para nadar, nademos.
De
um tempo para cá, passei a carrega-lo pela cidade. Pareceu não gostar tanto.
Reclamou que tudo é cinza, bradou palavras como caos urbano, falta de
mobilidade, que nem sei onde aprendeu. Mas, no fundo, diverte-se também. Só não
dá o braço a torcer, coisa de menino. Adiante, salto do meio-fio, tiro as mãos
do guidom e adivinhe quem se desperta em gargalhadas?
Era
uma quinta-feira. Na janela do ônibus, alguém observava a bicicleta trancada na
árvore defronte à centenária galeria. No sebo, uma frase quebrava as amarras da
página encardida que um dia já foi árvore. Escrita pela poeta dinamarquesa de
nome difícil, Tove Ditlevsen, a sentença tomava-me de assalto: “existe em mim
uma menina que se recusa a morrer”. Com o livreto em uma das mãos, respirei
fundo. A ausência de certeza, fonte eterna de segurança, me pregou a peça: e se
o menino um dia partisse de vez?
A
interrogação perambulava por minha cabeça. Fiz de desentendido, mas ele, vivo
como só, encurralou-me.
-
O assunto não é de menino – desviei.
Não
adiantou. Sucumbi à pirraça e abri meu coração. Contei da alegria de sentir
aquela criança renascer em mim a cada jornada de bicicleta. E do receio de que,
um dia, partisse sem dizer adeus. O menino riu e seguiu em frente. Pedalei
atrás. Em linha reta, sem saber virar.
*
Crônica publicada originalmente na Revista Bicicleta.
Parabéns!!! Seria tão legal se tudo mundo deixasse o próprio menino brincar mais.
ResponderExcluirSensacional!!
ResponderExcluirAmei, Renato. Parabéns pela sensividade.
ResponderExcluirAmei
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